segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Aos que vierem depois de nós

Realmente, vivemos muito sombrios!

A inocência é loucura. Uma fonte sem rugas denota insensibilidade. Aquele que ri ainda não recebeu a terrível notícia que está para chegar.
Que tempos são estes, em que é quase um delito falar de coisas inocentes,
pois implica silenciar tantos horrores!

Esse que cruza tranqüilamente a rua não poderá jamais ser encontrado pelos amigos que precisam de ajuda?
É certo: ganho o meu pão ainda, mas acreditai-me: é pura casualidade.
Nada do que faço justifica que eu possa comer até fartar-me.
Por enquanto as coisas me correm bem (se a sorte me abandonar estou perdido).
E dizem-me: "Bebe, come! Alegra-te, pois tens o quê!"

Mas como posso comer e beber, se ao faminto arrebato o que como, se o copo de água falta ao sedento?
E, todavia, continuo comendo e bebendo.
Também gostaria de ser um sábio.
Os livros antigos nos falam da sabedoria: é quedar-se afastado das lutas do mundo e, sem temores, deixar correr o breve tempo. Mas evitar a violência, retribuir o mal com o bem, não satisfazer os desejos, antes esquecê-los é o que chamam sabedoria.

E eu não posso fazê-lo. Realmente, vivemos tempos sombrios.
Para as cidades vim em tempos de desordem, quando reinava a fome.
Misturei-me aos homens em tempos turbulentos e indignei-me com eles.
Assim passou o tempo que me foi concedido na terra.
Comi o meu pão em meio às batalhas.
Deitei-me para dormir entre os assassinos.
Do amor me ocupei descuidadamente e não tive paciência com a Natureza.
Assim passou o tempo que me foi concedido na terra.
No meu tempo as ruas conduziam aos atoleiros.
A palavra traiu-me ante o verdugo.
Era muito pouco o que eu podia.

Mas os governantes se sentiam, sem mim, mais seguros, — espero.
Assim passou o tempo que me foi concedido na terra.
As forças eram escassas. E a meta achava-se muito distante.
Pude divisá-la claramente, ainda quando parecia, para mim, inatingível.
Assim passou o tempo que me foi concedido na terra.
Vós, que surgireis da maré em que perecemos, lembrai-vos também, quando falardes das nossas fraquezas, lembrai-vos dos tempos sombrios de que pudestes escapar.

Íamos, com efeito, mudando mais freqüentemente de país do que de sapatos, através das lutas de classes, desesperados, quando havia só injustiça e nenhuma indignação.
E, contudo, sabemos que também o ódio contra a baixeza endurece a voz.
Ah, os que quisemos preparar terreno para a bondade não pudemos ser bons.

Vós, porém, quando chegar o momento em que o homem seja bom para o homem, lembrai-vos de nós com indulgência.
(texto Bertold Brechet, com tradução de Manuel Bandeira)

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