segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Maria Pumpkin perdida no bosque

Na estação ferroviária quase vazia, um homem avança levando uma menina pela mão. Arrasta uma maleta. Sei que avança, porque o vejo na foto inclinado para a frente. E sei que a menina anda mais devagar, porque está uns passos atrás dele, e estica de leve o braço. Há muitos bancos vazios na estação àquela hora. Dali a pouco, o homem sentará a menina num deles e lhe dirá que fique ali quieta, que o espere sem chorar, porque ele logo volta. É provável que insista, eu volto. E ela chora bem baixinho quando ele se afasta, porque é pequena e tem medo, mas já aprendeu a obedecer ordens. E espera.

Quando escrevo, é só isso que se tem, uma foto e uma menina abandonada na estação de Melbourne, uma menina que se chama Qian Xun, mas que o mundo, apropriando-se em segundos da notícia e da menina, rebatizou Pumpkin. Polícia e jornais dizem que todos os indícios apontam para o pai como sendo o homem da mala.

Quando eu era criança, quando a minha mãe era criança, quando a minha avó e a mãe de minha avó eram crianças, quando as minhas filhas eram crianças, contava-se uma história semelhante. Não se passava na estação, mas no bosque. Um pai premido pelas dificuldades, levava seus filhos, o menino João e a menina Maria, para o bosque, e ali os deixava. Antes de ir embora, ele também dizia que ficassem quietos, brincassem, que ele ia cortar um pouco de lenha, e voltava logo.

Nem o pai de João e Maria, nem o de Pumpkin voltaram para buscá-los. João e Maria, graças a uma esperteza, conseguiram regressar para casa. Mas foi inútil, porque passados alguns dias o pai tornou a levá-los ao bosque, e dessa vez a esperteza não funcionou. Pumpkin é pequena demais para ter espertezas e voltar sozinha para casa. E, mesmo que o conseguisse, não encontraria o pai que, segundo a polícia, duas horas depois de deixá-la na estação tomou um avião para Los Angeles.

Inúmeras vezes, quando faço conferências ou em entrevistas, me perguntam se os contos de fadas não estão desatualizados, fora do contexto do nosso mundo moderno. Mas nossos moderníssimos adultos continuam abandonando crianças nos bosques urbanos, nos terrenos baldios, nas lixeiras, onde é grande o risco de serem carregadas pelos lobos, devoradas pelas feras, escravizadas pelos ogros.

Na casa de Pumpkin a vida era tão áspera quanto na do lenhador. O pai sofria de depressão, os negócios iam mal, o dinheiro estava curto. Várias vezes ela viu a polícia chegar, chamada pelos vizinhos para cuidar da violência que explodia. Pai e mãe acabaram se separando. Ainda assim, Pumpkin sentia-se mais segura na sua casa do que no lar provisório que a polícia lhe arrumou. Nos primeiros dois dias com aquela família desconhecida não falou uma única palavra e agora só responde sim e não.

Os contos de fadas, me dizem tantas e tantas vezes os adultos, são violentos demais para crianças. E franzem a testa em horror, citando logo avós devoradas, madrastas perversas, indivíduos metidos num saco e jogados no rio, irmãs degoladas, demônios descendo pela chaminé, bandidos, feiticeiros, gigantes. Muitos me garantem com orgulho terem "limpado" esses contos para seus filhos.

Escrevo à tarde, mas não é difícil prever que à noite, na televisão, todos os noticiários do mundo inteiro contarão a história de Pumpkin. Seu rosto não será poupado, como não o foi nos jornais. E teremos mais detalhes, provavelmente sinistros, sobre sua família, sobre o homem que a levou pela mão e a abandonou, sobre sua mãe que, até este momento, está desaparecida. Em muitas e muitas casas, em muitas línguas diferentes, crianças ouvirão a história dessa pequena Maria abandonada no bosque por quem devia cuidar dela, e estremecerão, sabedores do perigo que correm, pois toda criança corre o risco de ser maltratada pelos adultos.

Não sei que histórias Annie Liu, a jovem mãe de Pumpkin, lhe contava. É provável que fossem antigas histórias chinesas, cheias de dragões e de espíritos transformados em raposas, cheias de bandoleiros e de guerras. Mas se, em casa, Pumpkin aprendeu a violência, não foi nos contos trazidos pela voz da mãe.

A violência estava no cotidiano dos pais, nas notícias do fim do dia, no que Pumpkin conseguia entender do que via e do que ouvia, a violência estava em toda parte murmurando nos seus ouvidos palavras de medo. Nos contos, ela aprendeu a percepção que desmascara as falsas raposas, a astúcia que defende dos bandoleiros, a força que domina os dragões, a sabedoria que se opõe às guerras. Nos contos aprendeu a buscar soluções, assim como há séculos as crianças aprendem que madrastas e maçãs podem envenenar, mas o beijo de amor revive; que as filhas do ogro são decapitadas, mas os irmãos do Polegarinho se salvam; que o filho do moleiro nasce sem vintém, mas o Gato de Botas lhe garante uma noiva e uma fortuna; que há um cisne à espera no futuro de todo patinho feio.

O que Pumpkin aprendeu nos velhos contos chineses não impediu que fosse abandonada na estação. Mas pode ajudá-la a recuperar as palavras e abrir um novo caminho.

(texto de Marina Colasanti, publicado no Jornal do Brasil - 23/09/2007)

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